segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

"A primeira tapa arde na alma. Quando ele bate em você, aquilo arde. É na alma. É de ódio"

"A primeira tapa arde na alma. Quando ele bate em você, aquilo arde. É na alma. É de ódio"

Da Prefeitura do Recife


"Eu tenho muito orgulho de mim, viu?"
"A primeira tapa arde na alma. Quando ele bate em você, aquilo arde. É na alma. É de ódio. E você se pergunta como ama um homem daquele, como deita com ele e ele faz aquilo com você. Você não sabe como reagir. Vem aquele ódio e toma conta de você. Queima a sua vida", conta Maria Rita da Cruz, de 48 anos. Ela é uma daquelas mulheres de alma imensa. Sua triste história começou em fevereiro de 1990, ela não consegue esquecer a data. Antes de se casar, seu marido Arnaldo era o seu 'príncipe encantado'. Depois de três meses, tornou-se um monstro.
Quando ela engravidou da primeira filha do casal, tudo piorou. Arnaldo queria que Rita abortasse pois não queria ser pai de uma criança negra. "Enfrentei ele e comecei a apanhar. Ele me dizia que ou eu abortava ou morria junto com a menina. Todo dia que ele chegava, já ficava me tremendo", conta. Quando começou a criar coragem pra denunciar, ela foi a uma delegacia comum, no bairro do Jordão. A primeira coisa que o delegado fez foi questioná-la pelas tapas. "Ele me perguntava o que eu tinha feito para ter apanhado. Eu dizia que nada. Mas ele insistia e dizia que ninguém apanhava por nada. O delegado não acreditava em mim",desabafa. Na volta para casa, ela foi espancada novamente pelo seu companheiro.
Durante muito tempo, Rita foi e voltou diversas vezes na Delegacia do Jordão. Ela sempre era culpada pelo ataque de fúria do marido e voltava para casa repleta de silêncio. "Eu pensava assim: se ele fizesse alguma coisa comigo, tentasse me matar, alguém ia saber, sabe como era? Eu precisava ir lá". Entre as idas e vindas, um funcionário novo lhe indicou a Delegacia da Mulher. De lá, ela foi encaminhada ao Clarice. Ao perceber que o caso ia para frente, Arnaldo contratou dois homens armados para matar a sua esposa.
Rita vivia na corda bamba. Tentativas de homicídio, esconderijo para os filhos, espancamentos. Quando ela voltou mais uma vez da delegacia, seu marido havia estuprado sua filha de 16 anos, fruto de um antigo relacionamento. "Eu tinha dito a delegada que ele tinha ameaçado estuprar a minha filha, mas ela me disse que cão que ladrava não mordia. Quando cheguei, encontrei ela se tremendo no terraço, chorando. Eu peguei uma faca e, não sei onde fui buscar coragem nessa hora, fui pra cima dele. Gritei para os vizinhos. Me joguei na frente de uma viatura da polícia. Os policiais fecharam todas as saídas do bairro, mas ele fugiu pela mata", diz, ainda com rancor. Arnaldo passou um ano foragido, mas continuava ameaçando ela e a família.
Oito meses depois, Rita começou a dar entrevistas para a imprensa. Uma repórter a convenceu de que se ela mostrasse o rosto, ele não viria atrás dela. Seria uma ameaça às avessas. Seu ex-marido parou de ligar e, segundo ela, foi aí que voltou a andar de cabeça erguida. "Comecei a fazer cursos, ganhar meu dinheiro, participar de feiras. Peguei gosto", fala. Rita descobriu que, por descuido de seu advogado, os processos por tentativa de homicídio haviam prescrito. Ele ainda sugeriu que ela deveria ter feito um acordo com seu ex-marido, mas dinheiro nenhum no mundo, de acordo com Rita, pagaria o que ele havia feito com ela e com sua filha.
No meio do caminho, ela fez um curso de defensores para entender um pouco mais de leis. Conseguiu que seu marido fosse condenado a 11 anos e seis meses de prisão, em regime fechado, sem precisar de advogados. "Ele não pode recorrer não, viu? Mas tá foragido até hoje. Foi uma vitória a condenação. Se ele passasse um dia na cadeia, eu já ficaria muito feliz", revela. Hoje em dia, ela é ativista, trabalha em uma ONG feminista, estuda e cuida dos netos. Uma de suas maiores felicidades foi ensinar a fazer bijuterias para as mulheres do Clarice Lispector, foi uma forma de retribuir toda a ajuda que já recebeu na vida.
Rita ainda quer mais. Quer abrir seu próprio restaurante, ser empresária. "Eu me sinto feliz. Fico olhando quem eu sou. Nem levantava a cabeça, vivia apanhando, passei de morrer, aconteceu o que aconteceu com a minha filha. Eu tenho orgulho de mim. Era para eu estar louca ou estar morta. Eu tenho muito orgulho de mim, viu?". Viu, Rita.
O texto acima faz parte do livro "Reconstruindo vidas: mulheres que romperam a violência doméstica", que conta com depoimentos de 10 mulheres recifenses.‪#‎16diasdeativismo‬
Autora: Clareana Arôxa
Foto: Andréa Rêgo Barros/PCR

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