Bethânia põe a nu distorções e anacronismo da Lei Rouanet
POR MAURÍCIO CALEIRO
Maria Bethânia é uma artista de primeira grandeza. Senhora de dois mundos, tornou-se referência cultural no Brasil e em Portugal, com sua capacidade de mesclar o literário e o musical e de tornar o popularesco sublime e o sublime, popular.
Com o tempo, à medida que seus longos cabelos cacheados tornaram-se brancos como um véu, tornou-se para muitos uma espécie de figura referencial (a la Fernanda Montenegro), repositório de sensatez e sensibilidade, com uma espiritualidade evidente em semi-contraste com a aura de diva que sua figura irradia.
Os que privilegiam a técnica interpretativa como principal quesito para avaliação do desempenho de cantoras tendem a eleger Elis Regina sua referência máxima; mas entre os que preferem a emoção interpretativa, Bethânia (ao lado de Nana Caymmi) reina soberana. Na modesta opinião deste blogueiro, ela divide com Aracy de Almeida a mais alta posição no pódio das cantoras brasileiras.
Vaias a granel
Mas ontem essa protagonista da história cultural brasileira durante quase meio século viveu seu dia de Judas em Sábado de Aleluia, despertando a fúria de internautas ao obter a liberação do MinC para captar 1,3mi através da Lei Rouanet. Pior: para montar um blog (os altos custos seriam causados pelo emprego de profissionais e equipamentos de ponta para gravações de videoclipes a serem diariamente postados).
Inútil argumentar que há tempos se tornou recorrente a captação de dinheiro público por artistas cuja fama e penetrabilidade midiática permitiriam prescindir do Estado para avançar sua carreira: trata-se de um fato, mas não de uma justificativa.
Assim, o imbroglio envolvendo a cantora baiana pôs a nu as vicissitudes da "Lei Rouanet", instrumento que, logo após ser criado, desempenhou papel fundamental na sobrevivência de determinados setores artísticos durante o outono neoliberal, mas que, como o episódio em questão evidencia, acabou por gerar graves distorções nas relações entre economia, ideologia e produção cultural.
Tábua de salvação
Elaborado especificamente para reerguer a produção cinematográfica nacional, destroçada após a extinção da Embrafilme por Collor em 1990, o modelo de financiamento trazido pela "Lei Rouanet" em concomitãncia à "Lei do Audiovisual”, baseado em renúncia fiscal de parte do imposto devido por empresas, transferiu para o setor privado – especificamente, para os diretores de marketing de tais firmas – a tarefa de selecionar projetos e determinar os rumos da produção de filmes no Brasil. Com dinheiro público, bem entendido.
Sob forte pressão de outros segmentos culturais – notadamente a classe teatral - e à medida que o cinema brasileiro passava a demonstrar vitalidade, a lei passou a atender demandas de diversas áreas, inclusive da MPB – que, por uma série de razões histórico-mercadológicas, sempre andou com as próprias pernas, ao menos no que concerne a artistas com algum apelo popular.
Lado B
Na gestão Gil/Juca Ferreira, não obstante os esforços de rediscussão da Lei Rouanet quando esta completou dezoito anos, a situação gerou disparates, com artistas do porte de Caetano Veloso captando altos volumes de recursos – os quais poderiam beneficiar uma dezena de artistas que realmente precisavam do apoio da lei – e o internacional Cirque du Soleil valendo-se de recursos do povo brasileiro mas oferecendo ingressos ao preço mínimo de R$300,00.
Para completar, a mais poderosa empresa de mídia corporativa do país – a Rede Globo – tornou-se líder de captação pela Lei Rouanet, deixando à míngua gerações de novos cineastas enquanto inunda o mercado com seus filmes-novelões-minisséries previsíveis.
A privatização da cultura
A Lei Rouanet cumpriu sua função de revitalizar a produção cultural brasileira em tempos de vacas magras. Mas mostra-se, há tempos, prenhe de distorções e promotora de mecanismos viciados de benefício de famosos e descolados e de marginalização do novo e do ousado, num processo entrópico que, analisado detidamente, acabará por revelar uma das grandes razões para o relativamente baixo nível de renovação do mercado cultural brasileiro – e, na média, da defasagem de qualidade entre dos novos artistas e a de seus predecessores.
Há um porém: o pano de fundo ideológico que “justifica” e sustenta até hoje a Lei Rouanet é a herança maldita que o neoliberalismo nos deixou, simbolizada na bem-sucedida operação de demonização do Estado como ente gestor de cultura e na transferência do poder decisório do setor para a iniciativa privada. E, na atual conjuntura política, não há indícios de que nos livraremos de tal entulho tão cedo, mesmo porque, sui generis, o modelo de privatização da cultura, mas com dinheiro público, interessa muito ao poder corporativo e ao grande capital.
Resta, como catarse dos auto-iludidos, a indignação neoudenista e a unção de Bethânia a Judas da vez. While the show goes on...
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