Criança, consumo e sexismo – meus tostões sobre o Dia da Criança
Se ainda não aconteceu com você nesta semana vai acontecer, fatalmente: você ligará a televisão ou abrirá/acessará algum jornal ou portal de notícias e encontrará ao menos uma reportagem comentando a movimentação das compras para o Dia da Criança, as expectativas dos comerciantes traduzidas em porcentagens de lucros e projeções de vendas, encontrará também matérias especiais indicando presentes para os pequenos. A data é mais um daqueles imperativos comerciais aos quais a sociedade tem dificuldade em resistir, daí a alocação de espaço em veículos de informação e de recursos nos bolsos das famílias. Aqui em casa neste ano foi mais ou menos diferente: não planejamos qualquer compra de presente especial para a criança pequena da casa, mas ela foi contemplada pelas tias e pela avó materna. Nossa justificativa é a mesma usada em outros dias comemorativos ao longo do ano: existe um ano todo para ganhar presente, homenagem, atenção, e é bom que procuremos escapar de surtos consumistas, incluindo aqueles específicos sazonais; para a criança é importante também o aprendizado de que deve haver limites para consumo e de que essa atividade deve ser passível de crítica.
Essa aprendizagem não é muito fácil. Existe uma pressão social para que o consumo ocorra (imagine a criança de classe média chegar e comentar que não ganhou presente no Dia da Criança, qual é a reação que devemos esperar da maior parte das pessoas? Ainda que a criança seja presenteada em outras ocasiões…), existe uma pressão do mercado e da mídia. As propagandas no estilo “não esqueça a minha Caloi”, “eu tenho, você não te-em” e “peça para o papai…” desapareceram mas foram substituídas por um esforço contínuo e intenso em expor, repetir e reforçar a propaganda. Dez minutos em um canal ou em um horário de programação televisiva voltados às crianças devem servir para ilustrar o que afirmo; uma conversa rápida com famílias com crianças também
Afinal, qual é o problema com esse negócio de Dia da Criança? Eu diria que não é só a data comemorativa em si, mas o conceito de associar um dia específico a um tipo específico de consumo. Por exemplo, ainda que as livrarias anunciem também produtos para as crianças com mais ênfase na data o presente em geral é brinquedo. Por vários motivos: a falta do hábito de leitura como lazer e fora do ambiente escolar, a pouca intimidade com os livros, a dissociação entre livro e brinquedo. Prefiro não apontar com certeza o preço dos livros infantis como motivo para que eles não sejam presentes tão populares porque levo em consideração o que muitas famílias concordam em pagar por brinquedos – li hoje uma reportagem num jornal local na cidade onde passei o final de semana e ali se afirmava que os pais entrevistados assumiram que gastariam entre 50 e 100 reais com o presente. Ora, esse valor é bem suficiente para comprar alguns livrinhos. Ou jogos pedagógicos. Ou DVDs. Não posso responder por todo mundo, claro, mas eu acho que apesar de haver brinquedos que podem ficar marcados na memória da criança um livro, um quebra-cabeça ou um DVD duram mais – acho mais fácil enjoar de um brinquedo (sobretudo eletrônico, em que a brincadeira não precisa necessariamente ser inventada) do que de um livro, que pode ser relido mais vezes, com o mesmo encanto, o mesmo interesse (eu releio periodicamente alguns dos meus livros e fico feliz em reviver situações e experimentar sentimentos familiares, mas também sempre repenso alguma coisa) e novos encantos.
Outra questão importante tem a ver com o direcionamento dos brinquedos para o gênero: aponta-se tanto a modernidade do mundo e da sociedade, a derrubada de fronteiras, de tabus, mas ainda existem nas lojas de brinquedos prateleiras de menino e de menina; os vendedores ainda nos abordam e nos perguntam “é pra que idade? É pra menino ou é pra menina?”. Ainda encontramos produtos de aparência “feminina” e “masculina” e aludindo a qualidades específicas de cada gênero – delicadas florzinhas enfeitando conjuntos de panelinhas cor-de-rosa e bonecos parrudos em tons escuros, com chamas adesivadas, passando uma imagem de vigor, virilidade, força. “Ah, mas você pode dar mesmo assim um conjunto de panelinhas pro seu filho, você pode dar um playmobil de piratas pra sua sobrinha”, e é verdade (sim, eu já fiz isso das panelinhas, e não esqueci um post muito preciso da Mari Biddle a respeito da diferença entre um playmobil de menino e de menina). Pra mim não faz diferença a cor, de fato, mas por que continuar investido obrigatoriedade nos estereótipos de gênero tão arraigados? Meninas também são aventureiras e fortes, meninos também são meigos e contemplativos, a menos que haja o estímulo contínuo para que adotem apenas o comportamento esperado pelo senso comum. Da minha parte acho bobagem suprimir atitudes e sentimentos naturais de uma criança em nome de uma convenção social que em geral é sexista e injusta, porque impõe limites que para serem superados demandam um esforço besta – a menina vai crescer e vai precisar provar que não há problema algum em não ser meiga, delicada, voltada à vida doméstica e o homem crescido vai se ver frente ao velho dilema de “homem não chora” (sim, são exemplos bobinhos, porque bobinha é a insistência em reforçar estereótipos, amarras).
O Dia da Criança é depois de amanhã. As compras podem estar em cima da hora, mas dá tempo sempre de parar para pensar um pouquinho em todas as questões suscitadas por datas comemorativas de fundo comercial e por esta data em especial. Antes de mais nada questione se é fundamental ceder ao apelo consumista e quais os custos financeiros, sociais, psicológicos que estão envolvidos em burlar a data ou aderir a ela: a criança que você presenteia tende a compreender melhor a ausência, devidamente justificada e quem sabe negociada, de um presente dia 12 de outubro? Você se sentiria melhor comprando o presente ou deixando de fazê-lo? Qual é o custo dos presentes dados nesta data e ao longo do ano (vamos lembrar que assim que a campanha do Dia da Criança virar a esquina o Natal vai começar a nos soterrar nas prateleiras e corredores)? Reflita também a respeito da prevalência do brinquedo tradicional como presente – nossas crianças estão chegando a um ponto de ganhar dois ou três brinquedos repetidos no aniversário e acho que todo mundo já se viu coçando a cabeça em frente a uma pilha de brinquedos na loja, com dificuldades para escolher algo que aquele aniversariante ainda não tenha. Um passeio pode ser tão ou muito mais interessante do que mais um carrinho, e presentear com momentos e não produtos é fundamental para o desenvolvimento de sentimentos, sensibilidades e atitudes que os brinquedos podem não alcançar – então pense se não vale a pena ignorar aquele anúncio ridículo da rede de lojas que quer te ensinar que “criança gosta é de brinquedo”. Por fim sugiro que você leve consigo a reflexão importante a respeito do peso dos brinquedos para o desenvolvimento e o estímulo do sexismo desde a primeira infância (já falei sobre esse assunto em um texto lá no Blogueiras Feministas há algum tempo).
Criança gosta de atenção, de estímulo, de desafio, de gentileza, de novidade, de amor. Pense em como você pode oferecer isso e tenha um ótimo Dia da Criança!
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