Isso é tolerância e respeito: “hão de ser respeitadas tanto as que optem por prosseguir a gravidez quanto as que prefiram interromper a gravidez”.
O STF, a anencefalia e a gravidez de Alessandra
O que a decisão do Supremo Tribunal Federal nos ensina sobre tolerância
Cristiane Segatto
O Direito não é minha área, mas aprendi a admirar o ritual das grandes decisões do Supremo Tribunal Federal (STF). Como é bonito o embate de ideias entre ministros eruditos, as defesas feitas com palavras exatas, a resolução, à luz da lei, dos mais difíceis dilemas da sociedade.
Descobri a beleza dessas sessões quando acompanhei em 2008, no plenário, a votação que liberou as pesquisas com células-tronco embrionárias no Brasil. No julgamento em que o então-presidente Gilmar Mendes tinha a bandeira brasileira e o brasão da República à direita e o Cristo crucificado à esquerda, o Supremo reafirmou a separação entre Estado e Igreja.
“O direito não se submete à religião”, disse o ministro Celso de Mello. Naquela decisão, o STF colocou a liberdade individual e a liberdade da expressão científica acima dos dogmas religiosos. Foi um primeiro passo.
Ontem, 12 de abril, voltou a fazer história. Ao aprovar a interrupção da gravidez em casos de anencefalia, a Suprema Corte fez mais que amparar as milhares de brasileiras que todos os anos enfrentam a dor de ter no útero um feto sem cérebro e incompatível com a vida.
Com o placar de 8 a 2, o Supremo Tribunal Federal deu uma clara mensagem contra a intolerância. Uma mensagem fundamental a todos os brasileiros – de qualquer gênero, idade, condição social ou crenças.
Exemplares, exatas, primorosas foram as palavras do ministro Marco Aurélio de Mello, relator da ação movida pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde e que aguardava o julgamento há quase oito anos.
“Estão em jogo a privacidade, a autonomia e a dignidade humana dessas mulheres. Hão de ser respeitadas tanto as que optem por prosseguir a gravidez quanto as que prefiram interromper a gravidez para pôr fim ou minimizar um estado de sofrimento. Não se pode exigir da mulher aquilo que o Estado não vai fornecer por meio de manobras médicas."
Privacidade. Autonomia. Dignidade. Respeito à opção da mulher.
Esses conceitos, cruciais em qualquer democracia, foram, agora, valorizados explicitamente. É muito simbólico e significativo que a mais elevada instância da Justiça os tenham pronunciado em alto e bom som.
E ainda mais foi dito pelo ministro:
“Concepções religiosas não podem guiar as decisões estatais, devendo ficar circunscritas à esfera privada. A crença religiosa ou a ausência dela serve precipuamente para ditar a vida privada do indivíduo que a possui. Paixões religiosas de toda a ordem hão de ser colocadas à parte das decisões do Estado”.
A fé só faz sentido a quem a tem. Essa é uma frase que gosto de repetir. É função dos grupos religiosos ditar as normas de conduta de seus fiéis. Mas não é aceitável que se julguem no direito de obrigar a população inteira a seguir seus preceitos.
Não. Eles não têm esse direito. O STF foi claro.
Uma pessoa, em especial, sentiu-se aliviada. Não por ela, mas por todas as mulheres que, de agora em diante, só levarão adiante uma gravidez de anencéfalo se assim o desejarem.
O nome dela é Alessandra Gomes. Tem 41 anos. Estudamos na mesma sala no ginásio. Alessandra era a menina feliz, de cabelos louros e olhos verdes, grandes e brilhantes. Parece que foi ontem.
O nome dela é Alessandra Gomes. Tem 41 anos. Estudamos na mesma sala no ginásio. Alessandra era a menina feliz, de cabelos louros e olhos verdes, grandes e brilhantes. Parece que foi ontem.
Na foto da excursão escolar para Campos do Jordão, no início dos anos 80, ela aparece comigo e outras amigas. Sorridentes, com uma muralha natural de hortênsias ao fundo, tínhamos só vida e sonhos pela frente.
E assim foi. Até que, em 2006, Alessandra viveu a experiência aterradora de levar até o final a gravidez de um anencéfalo.
Ela e o marido Marcilio, donos de uma gráfica em São Paulo, já eram pais de Guilherme. Um garoto lindo, saudável, carinhoso que hoje tem 13 anos. A gravidez do segundo filho, uma surpresa, foi celebrada com festa pela família.
Juntos, capricharam na escolha do nome. O caçula se chamaria Enzo. O mais velho participou do projeto do quarto e das primeiras compras do enxoval do irmãozinho.
Juntos, capricharam na escolha do nome. O caçula se chamaria Enzo. O mais velho participou do projeto do quarto e das primeiras compras do enxoval do irmãozinho.
O resultado das primeiras ultrassonografias e do exame de translucência nucal foram normais. A felicidade durou até a 21ª semana de gestação, quando o laudo da ultrassonografia morfológica fetal veio acompanhado de um palavrão: ventriculomegalia discreta.
A primeira coisa que Alessandra fez ao chegar ao trabalho foi digitar esse nome num site de busca. Foi tomada por imagens e depoimentos deprimentes e, só então, começou a perceber que havia algo errado.
Começou então o calvário de consultas a vários médicos e exames de todo tipo. Quase na 24ª semana, Alessandra estava sozinha quando recebeu a notícia definitiva. Durante aquela ultrassonografia inesquecível, o médico demorou muito mais que o habitual para registrar todos os detalhes. Em silêncio. Num silêncio aflitivo. Disse que só ao final do exame diria algo à mãe.
Alessandra estava chorando quando, finalmente, ele se virou e decretou:
“Anencefalia. Se o bebê chegar a nascer, a chance de sobreviver é muito pequena. Se sobreviver, não andará, não falará, não ouvirá. Tem apenas 2% de cérebro. Será um vegetal”. Ela saiu do laboratório sem rumo. Ligou para o médico, para mãe e para o marido. “Perguntava a Deus por que eu deveria passar por aquilo se era uma pessoa de bem, com saúde e condições de criar um filho com o mesmo amor que o primeiro sempre recebeu”, diz. “Entrei numa igreja e lá fiquei por alguns minutos, esperando vir uma luz, algo que me confortasse. Depois fui para o colo da minha mãe”.
Alessandra procurou um dos mais conceituados especialistas do Brasil em medicina fetal. Sentiu-se amparada emocionalmente e tecnicamente por uma equipe de primeira. Mas ali começaram os gastos que a obrigaram a pedir um empréstimo para cobrir todas as despesas até o final da gestação.
A cada novo exame e nova consulta, os médicos reafirmavam ao casal que aquele feto não sobreviveria. Alessandra e o marido foram aconselhados a pedir autorização judicial para interromper a gestação.
O casal procurou um advogado, ouviu relatos de outras mulheres que passaram pela mesma situação e até visitou um hospital para conhecer crianças nascidas com malformações cerebrais.
“Desisti de entrar na Justiça porque queria proteger minha família”, diz Alessandra. “Não queria que grupos religiosos descobrissem a nossa ação e entrassem em nossas vidas.”
Alessandra queria e precisava de privacidade, autonomia, dignidade, respeito a sua opção individual. Tudo o que, só agora, seis anos depois, o STF garante a todas as mulheres na mesma situação.
Alessandra queria e precisava de privacidade, autonomia, dignidade, respeito a sua opção individual. Tudo o que, só agora, seis anos depois, o STF garante a todas as mulheres na mesma situação.
A barriga de Alessandra crescia, o filho Guilherme acompanhava, mas não enxergava felicidade naqueles lindos olhos. A mãe não contou detalhes. Disse, apenas, que Enzo estava doente. “Quando eu chorava demais, Guilherme me dava carinho e falava com os olhos”. Como falava com os olhos aquele menino!
O último exame, quase no oitavo mês de gestação, comprovou que o coração do feto não batia mais. Óbito fetal.
Alessandra não queria fazer uma cesariana. Não via sentido em voltar para casa sem o filho nos braços, mas com um corte dolorido e pontos no ventre para prolongar a tortura.
Decidiu esperar e ver se seu corpo, naturalmente, expulsava o feto. Correndo riscos, passou uma semana nessa situação. No dia do parto, disse ao filho Guilherme que iria voltar sem a barriga e sem o irmão. “Guilherme não questionou, não se revoltou. Cuidou de mim como se eu fosse a criança. Não saía do meu lado e o tempo todo dizia que me amava eternamente. Foi uma bênção de Deus”, diz.
Internou-se no hospital às 7 da manhã. A enfermeira a recebeu com um sorriso nos lábios e disse: “Que moça linda. Vamos ter aqui mais um bebê de olhos claros”. Só depois, constrangida até o último fio da alma, percebeu que Alessandra trazia um atestado de óbito nas mãos.
Minha amiga sofreu contrações até às 17 horas. E, então, o fim chegou. As lágrimas do médico, que nunca havia passado por aquilo, se misturaram às do casal.
No dia seguinte, Alessandra recebeu alta. Entrou no carro e, logo atrás, viu o carro da funerária. Da maternidade, foi direto para o cemitério. Teve de cumprir uma das mais cruéis obrigações legais que o Estado pode sujeitar uma mulher.
Não pode mais. Desde ontem, as mulheres estão amparadas pelo Estado. Agora é cobrar para que todas recebam atendimento digno e de qualidade, capaz de aliviar, ainda que minimamente, a dor que enfrentam.
Solidária a todas as grávidas de anencéfalos, Alessandra comemora a decisão do STF. “As pessoas só tem o direito de julgar, de criticar, quando passam pelo problema. É uma questão que cabe ao casal decidir – e não ao mundo. É um assunto que não combina com religião. Viver é se tornar autor da própria história. Qual criança com anencefalia vai ter sua história?”
Um novo capítulo se abre na história do Brasil. Como disse o ministro Marco Aurélio de Mello, “hão de ser respeitadas tanto as que optem por prosseguir a gravidez quanto as que prefiram interromper a gravidez”.
Isso é tolerância e respeito.
E você? Conhece alguém que passou pelo mesmo problema? O que achou da decisão do STF? Queremos ouvir sua opinião.
Cristiane Segatto escreve às sextas-feiras na Época
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