sábado, 8 de dezembro de 2012

Porto Alegre: Travestis contam como o pior presídio do país se tornou o mais tolerante, sem homofobia

Porto Alegre: Travestis contam como o pior presídio do país se tornou o mais tolerante, sem homofobia

Casais contam como é a rotina em galeria que abriga só homossexuais no Presídio Central de Porto Alegre
Kamila Almeida

Há oito meses, nasceu um arco-íris em uma das galerias do Presídio Central. E a pior cadeia do país tornou-se uma das mais tolerantes do Brasil. Em um mundo à parte, na terceira galeria do prédio anexo H, moram 36 gays, travestis e seus companheiros. 

São os únicos com permissão para lidar com agulhas e tesouras por causa do artesanato que produzem e habitam as celas mais limpas e enfeitadas do complexo. A iniciativa fez do Central a segunda prisão a ter um espaço exclusivo para casais homossexuais. Zero Hora dividiu o cárcere com eles por duas tardes ao longo da última semana e revela histórias que emocionam e surpreendem na maior prisão do Estado.

Assista ao relato dos presos em vídeo:


Três lances de escada levam a um corredor de quase 30 metros de extensão que divide quatro celas para cada lado. Móbiles coloridos pendurados no teto revelam um ambiente metamorfizado.

É ali que a história de nove uniões homoafetivas se desenrola.

O ambiente carcerário tem a aura densa de sempre, apesar de arejado. O cheiro, que nem de longe perdeu a característica de confinamento, nem de perto lembra o odor exalado do pavilhão B, hoje o mais lotado com 993 presos onde cabem 394.

Os carcereiros dizem que são os mais tranquilos habitantes dos 4.102 presos. Mas os próprios detentos confessam: dá cada arranca-rabo.

— Conservam a vaidade das mulheres, as disputas e a agressividade do homem. Tudo em uma pessoa só — define um policial militar.

Apesar da luta pelo respeito, carregam um passado de delitos. Trocaram tiro com a polícia, mataram desafetos, roubaram banco, envolveram-se com tráfico. Pelos crimes, foram condenados pela Justiça. 

Pela preferência sexual, tinham a pena duplicada ao passarem por humilhações que incluíam surras, estupros e torturas. Para evitar baderna e controlar ímpetos, uma lista de regras é apresentada a cada novo habitante. A primeira é bem objetiva: quer namorar? Tem que casar!

— Se não vira putaria — adverte um detento.

Casamentos na galeria

Mayara Cristiny Cruz, 27 anos, travesti que há oito meses descobriu a ala e pediu transferência de Santa Cruz do Sul para o Central, casou-se em 13 de junho passado, dia de Santo Antônio, o casamenteiro. Mas o matrimônio não fazia parte dos planos de Mayara, que "ficava" com um preso confinado no mesmo pavilhão, mas no andar de baixo.

O namorico despretensioso desagradou os demais colegas. E a permanência de Mayara na ala foi condicionada ao enlace. Não houve papel passado, troca de alianças, vestido de noiva — como no filme Carandiru, baseado no livro Estação Carandiru, de Drauzio Varella. Mas teve ritual e festa.

— Nalanda (a presa que chefia a galeria) disse que me chamavam lá embaixo. Levei um susto. Tinha um paredão com 50 de cada lado. Ao fundo da galeria do segundo andar, o plantão (preso que comanda todo o prédio) e o meu marido me esperavam. Fui até lá meio que empurrada — detalha Mayara.

No papel de juiz informal, um detento-chefe perguntou se a noiva aceitava o pretendente. Um beijo na bochecha do noivo, que tem a identidade preservada, representou o sim, e Mayara, acusada de um homicídio, voltou correndo para o terceiro andar.

O marido subiu atrás, de muda. Nunca mais desceu. A partir daquele momento, tornaram-se mais respeitados entre os seus pares.
Foto: Jean Schwarz/ Agência RBS
Amor e ciúmes
—Precisa ser muito macho para se assumir aqui —diz Claiderson Bitencourt Gonçalves, 24 anos, marido de Fabíola Yasmin Gonçalves, 25 anos.

Claiderson foi casado e teve dois filhos. Desde que quebrou a liberdade condicional e retornou ao presídio, há dois anos, passava os dias pensativo, solitário.

—Decidi que queria morar na ala dos travestis. Para não comunicar o chefe da minha galeria, fingi que estava doente e fui para a enfermaria. Disse para o médico que eu queria ir para a ala dos gays —revela Claiderson.

Quando viu Fabíola, se apaixonou. Desde que casaram, há seis meses, não se desgrudam. Ele morre de ciúmes da companheira e enlouquece quando ela resolve andar sozinha pelas galerias.

—Não dá para ser diferente. Olha o que tem de homem aqui. Se vacilar, já viu —alerta o marido, que fez com que a marcação cerrada lhe rendesse o apelido de "guarda".

O ciúmes sufoca a parceira:

—Eu quero tomar banho, colocar uma roupa curtinha, descer para o pátio. Não é por mal. Mas olho pra trás e o Claiderson está sempre me cuidando.

Claiderson se justifica:

—Aí, ela começa a me xingar, sobe, diz que vai embora, pega as coisas dela, bagunça tudo. Eu vou para um canto, choro. Ela se arrepende, volta e fica tudo bem.

Quando o tempo fecha de verdade, a cama de 2 metros por 88 centímetros que dividem fica ainda menor.

—Ela se irrita comigo, me bate, e eu tenho que dormir no chão. Eu não revido porque sei que se eu fizer isso vou colocar todo o carinho que demonstrei por ela pelo ralo —confessa Claiderson.

Demonstração de afeto como a de Claiderson e Fabíola, que andam de mãos dadas, trocam beijos e carícias na frente dos colegas, não acontece com todos.

Uma travesti de 46 anos e o parceiro, de 36 anos, que preferem ter os nomes preservados, são os mais discretos. Juntos há três anos, passam o dia confeccionando bruxas de tecido, fuxico e todo o tipo de artesanato. 

Nunca beijaram-se no corredor. Os momentos íntimos ficam restritos aos encontros sob o "quieto", um lençol preso a um fio na lateral da cama que serve de cabana.

Um pouco dessa conduta vem da timidez da companheira, que tem seis irmãos homens. Foi o único filho a prestar serviço militar. A trajetória do marido, ex-heterossexual, pai de família, também colabora para o recato do casal.

—Olhava ela quieta no pátio em dia de visita e me aproximava para conversar. Não gostava de vê-la sozinha.

Violência punidaNa lei do xadrez, discussões são relevadas. Agressão física, apenas uma ocorrência. Na segunda vez que os casais partem para a porrada, são separados de cela.

—Já teve gente que não se adaptou e mandamos para outro presídio. Demoramos para conquistar isso aqui, temos de dar o exemplo —lembra Nalanda Bittencourt Louzada, 25 anos, a representante da galeria.

Mayara, a noiva que teve a história contada no início desta reportagem, está separada. Insistiu para que o marido deixasse o carteado. Não resolveu. Ele bateu nela. Na segunda, Mayara revidou.

—Ele nunca me deixou faltar nada, ele é muito agressivo. Cobrei, ele deu em mim, na cama. Na segunda vez disse que não ia aceitar mais isso. Larguei ele com um olho roxo. Não volto mais. As colegas também não deixariam. Brigou, separa —diverte-se a travesti.

A conquista de NalandaO ambiente mais alegre do Central foi conquistado a sangue. Nalanda foi uma das que encabeçaram a luta, unida à ONG Igualdade. Quando o ex-chefe do pavilhão em que ela cumpria pena descobriu a reivindicação, pagou três travestis para dar uma surra em Nalanda.

—Apanhei com pedaço de ferro. Fiquei com a cara deste tamanho. Uma semana depois, ganhamos o nosso lugar —conta Nalanda, orgulhosa.

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