terça-feira, 12 de agosto de 2014

“Não sou uma mãe pior porque meu filho mora com o pai”

“Não sou uma mãe pior porque meu filho mora com o pai”

A mudança dele para a casa do pai me ajudou a perceber a cultura da maternidade compulsória: será que todas queremos o papel de mães perfeitas de tempo integral?

Marcela Buscato

SAUDADES A jornalista Fabiana Faria abraça o filho João, de 5 anos. Ele agora mora com o pai (Foto: Filipe Redondo/ÉPOCA)
SAUDADES
A jornalista Fabiana Faria abraça o filho João, de 5 anos. Ele agora mora com o pai (Foto: Filipe Redondo/ÉPOCA)
Quando o pai dele ligou para dizer que precisávamos conversar pessoalmente, já intuía o assunto. O encontro aconteceu há pouco mais de quatro meses, num restaurante perto de onde moro, na Zona Sul de São Paulo. Mal começamos a comer, e ele disse: “Quero que o João venha morar comigo”. Fiquei paralisada. Gelada. João é nosso filho. Desde que Marcos e eu nos separamos, há três anos e meio, esperava esse dia chegar. A vida de Marcos estava estável financeiramente, ele se casara de novo, e a mulher dele também queria que João fosse morar lá. Não havia motivos para dizer não. Afinal, por que ele teria de morar comigo? Por que sou a mãe? Sim, sou só a mãe. E Marcos é o pai. Ele tem o mesmo direito e a mesma vontade de exercer a paternidade que tenho de ser mãe. Amamos João igualmente. Naquele momento, na mesa do restaurante, tomei a decisão: era a hora de João se mudar. Alguns filhos vão embora aos 18 anos. Outros depois. João foi aos 5.
A mudança ainda é recente. Faz algumas semanas que João deixou minha casa, tempo suficiente para sentir sua falta. A casa arrumada pede uma baguncinha. Há um silêncio estranho no ar, de uma calma que chega a incomodar. Parece um descanso merecido, mas que traz culpa. Às vezes, dói como um abandono, mesmo sabendo racionalmente que ninguém foi abandonado. Só queremos o melhor para ele. João terá a oportunidade de experimentar outro lado da própria vida. Não cabe a mim ser egoísta e negar isso a ele. Na casa de Marcos, ele estreitará os laços com o pai, conviverá com Pedro, enteado do pai que ele considera um irmão. E ainda acompanhará o nascimento de novos irmãos. Marcos descobriu há pouco tempo que será pai novamente. Desta vez, são gêmeos. João participará dessa experiência, algo que não pretendo repetir.
Nem todos esses argumentos me ajudaram, a princípio, a atenuar a culpa por deixar João ir. A sensação de ser a pior mãe do mundo me assolou durante semanas. Não conseguia encontrar sentido na vida se meu filho não estivesse comigo. Levou um certo tempo para perceber que essa culpa não era minha, me fora imposta. Ela vem de uma cultura ultrapassada que paira sobre as mulheres. Para sermos completas, temos de ser mães. É o que chamo de maternidade compulsória. Além de mãe, temos de ser perfeitas. Cabe a nós dar conta de absolutamente tudo: da casa, do trabalho, de cuidar do marido e do corpo. Ainda temos de fazer com que nossos filhos sejam mais inteligentes que os dos outros. Será que precisamos mesmo dar conta de tudo? Queremos mesmo fazer tudo isso? Muita gente fica chocada quando digo que não pretendo ter mais filhos. Queria muito ser mãe. Fui mãe. Para mim, bastou. Fiquei mal-humorada os nove meses de gestação, me sentia indisposta. Só que as mulheres não podem falar sobre isso. Você tem de ser uma grávida linda, plena, adorar as modificações em seu corpo.
Minha decisão de permitir que João more com o pai não significa de forma alguma que queira me desfazer de meu filho. Não sou uma mãe desnaturada, não estou louca nem quero férias – ainda que muitos achem que esses são os motivos reais. Muitos conhecidos entendem a decisão e até admiram. Mas críticas também apareceram. As reações vão de “nossa, mas que coragem!” – algo que já denuncia uma reprovação sutil à ideia – a manifestações mais elaboradas de censura. Alguns comentários que recebi em meu blog são bastante explícitos: “Você só pensa no seu bem-estar. Vai deixar o filho morar com o pai para poder dormir até meio-dia”.

Já estava preparada para esse tipo de crítica. Faz parte de nossa cultura patriarcal atribuir todo cuidado dos filhos à mãe. Quando um casal se separa, fica automaticamente entendido que as crianças ficarão com a mulher. Ninguém acha que o homem tenta transferir sua responsabilidade de pai. Criar um filho é uma carga muito grande. No dia a dia, você está sozinha. Não tenho familiares por perto, que possam ajudar quando a babá falta e preciso ir cedo ao trabalho. Esses anos em que João morou comigo foram intensos – tanto em aprendizado quanto em excesso de trabalho e responsabilidade. A mudança traz um pouquinho de alívio e descanso, apesar da saudade.
Agora, poderei fazer um happy hour com os amigos do trabalho de vez em quando, voltarei para minhas aulas de dança e, finalmente, dormirei bem. Apesar de João já ter 5 anos, ainda hoje não dormimos direito. A mudança também será uma oportunidade para pôr em dia minha situação financeira. Não terei mais de pagar a babá que cuidava dele enquanto eu estava no trabalho. Estou numa empresa há cinco meses, depois de dois anos trabalhando em casa por conta própria. Esse período foi maravilhoso para ficar mais próxima de João: eu o levava e buscava todos os dias na escola, participava das reuniões, conseguia levar aos médicos. O preço foi ter uma renda variável, que me deixou numa situação financeira complicada.
Outro motivo muito forte me fez aceitar a proposta de Marcos. Ele foi o porto seguro da família quando tive depressão pós-parto, logo após o nascimento do João. Foi o melhor pai que nosso filho poderia ter naquele momento delicado. Foi o amigo que eu precisava para conseguir superar esse obstáculo. Sou eternamente grata a ele. Sei quanto sofreu de saudades de João quando nos separamos. Merece ficar mais próximo do filho que ama tanto.Cheguei a me perguntar se ter tido depressão pós-parto não influenciou minha decisão. Será que sou menos apegada a meu filho do que deveria ser? Hoje, tenho certeza de que não. Existe um estigma de que as mães sofrem com esse transtorno porque não suportaram o peso da maternidade. Não é verdade. Há causas biológicas, como mudanças hormonais ou predisposição genética. Quatro dias depois de voltar do hospital, após uma cesárea complicada, tive crises de choro, suava frio quando João mamava no peito, sentia-me mal. Amigas que me visitaram lembram que eu não conseguia me referir a João pelo nome ou chamá-lo de filho. Era “aquele moleque”. Estava tão doente que mal me lembro. Nesse período, quem nos ajudou a cuidar dele foram minha irmã e duas babás, uma durante o dia e outra à noite. Eu não podia ficar sozinha com João. Havia a possibilidade de pôr nossas vidas em risco.

O tratamento médico surtiu efeito relativamente rápido. Foram cerca de sete meses, até que conseguisse me vincular emocionalmente a João. Desde então, recuperei o tempo perdido de afeto. Os anos em que moramos só ele e eu, após a separação, ajudaram-me a entender que mãe eu poderia ser para o João e que mãe ele precisava que eu fosse. Talvez nunca seja aquela que faz um grande almoço de domingo, passa a roupa e cobra a lição de casa. Sou do tipo que joga bola, quer saber como foi o dia e dá conselho. Olho no olho e sei o que meu filho está sentindo. Sou a mãe que leva para experiências novas e faz pensar de maneira diferente. Para João, isso basta.

Época

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