O caso Rômulo Lemos e a cultura do macho-pegador
Alyson Freire
A agressão de Rômulo Lemos a estudante Rhanna, que resultou em quatro placas de titânio e dezesseis pinos no braço desta última, foi um dos assuntos mais comentados dos últimos dias. Num primeiro momento, a estupidez e a brutalidade do ato exigem, quase que de forma automática, o repúdio e a cobrança pelas medidas cabíveis de apuração e punição ao agressor. Afinal de contas, diante de tamanha bestialidade, e a fim de evitar outras atitudes e cenas similares, a primeira atitude racional que devemos tomar é a reprovação e demanda de providências imediatas. Porém, passado o choque da notícia e da cena, é o momento de pensar a propósito e dar algum tratamento que a relacione com um contexto e questões mais amplas, e que nos digam respeito como sociedade. A violência ali perpetrada vai mais além de quem exerceu e de quem a sofreu.
É preciso ver nesse episódio mais que a brutalidade do golpe, mais do que a revolta contra a crassa troglodice ou a pressão pela responsabilização penal, mais que os envolvidos e seus estereótipos. Há nisso tudo a atuação de um padrão machista de relações sociais, um modo violento, cruel e sádico pelo qual, muitas vezes, os homens se relacionam com as mulheres.
E não se trata aqui, como se poderia, apressadamente, concluir, de manifestações extremas como estupro e o espancamento regular. Mas de atos sutis, posturas e atitudes cotidianas, presentes e atuantes em gestos, palavras e olhares por meio dos quais os homens se aproximam, “apreciam”, paqueram ou se dirigem às mulheres. Trata-se das passadas de mão em ônibus ou corredores, as frases e provocações grosseiras, as insinuações invasivas, o “comer com os olhos”, as buzinadas, assobios e “psius”. Tudo isso que expressa literalmente um não-reconhecimento da autonomia e integridade moral do outro, da liberdade de seu corpo e de seu desejo. Visto desse ângulo, é fácil entender porque o comediante Rafinha Bastos sente-se tão à vontade em suas “piadas” pretensamente irônicas sobre as mulheres, pois enxerga nestas seres violáveis, ainda que seja por palavras e tiradas “bem-humoradas”, nem se importa, reconhece ou mede os efeitos de sofrimento e humilhação causado no outro.
A indignação contra o episódio não pode nos fazer perder de vista esse horizonte cultural violento e sádico que norteia o modo de relacionar-se entre homens e mulheres dentro do qual tal episódio está essencialmente inscrito, reduzindo assim a questão à responsabilidade individual do autor da agressão. Desde a tenra infância, os meninos são incentivados a afirmar sua virilidade, educados para ter poder sobre as mulheres e sobre outros homens em detrimento da sensibilidade e reconhecimento dos efeitos perversos sobre o outro de tal afirmação e poder. Trata-se de um processo violento de incorporação de uma masculinidade machista, um processo dramático e doloroso, inclusive, para os próprios, pois devem frequentemente ratificar para si mesmos e aos demais o seu poder viril enquanto prova de sua identidade masculina. Desse modo, a violência tem sido um aspecto constitutivo da educação e da identidade dos homens, o significante em função do qual vêem a si mesmos como homens, o meio para se tornarem homens de verdade.
O caminho para fazerem-se de si mesmos homens, em nossa cultura e sociedade, está intimamente ligado tanto à violência virilizadora quanto à posse de mulheres. Uma educação fortemente centrada no imperativo de se ter poder sobre as mulheres, de subjugá-las à vontade masculina, é o que está na raiz de uma série de práticas comuns, pelas quais os homens gozam de ampla e irresponsável liberdade no trato com às mulheres, inclusive promover, em baladas e carnavais, “ataques” e cercos em bando contra estas, acossá-las e segurá-las pelo braço, pelo cabelo ou cintura quando os recusam ou ignoram.
Infelizmente, tal crença apóia-se num traço – ainda persistente e com alguma força de realidade – de nossa cultura, que educa e constrói mulheres e homens para o olhar e o exercício da masculinidade, como que a afirmação da feminilidade das primeiras e da masculinidade dos segundos somente são possíveis mediante esta relação de um sujeito que olha ofensivamente, invade e que fala grosserias e um objeto passivo que somente se realiza se for notado e devassado com virilidade e agressividade. É dessa crença misógina que deriva a ideia que a mulher está provocando quando sai de casa de saia ou shorts curtos, o que é interpretado na cabeça vazia de muitos como sendo um tipo de autorização ao assédio, ou a representação feminina pelos comerciais e pela publicidade em geral da mulher como uma máquina cuja única qualidade e atributo significativos são a sedução e o seu corpo.
Quando adolescentes, pais e amigos estimulam e encorajam a “raparigagem” inconsequente. Quando jovens adultos, a prova da masculinidade toma a forma de uma corrida pela conquista de mulheres-troféus a serem levadas para casa e exibidas em festas. É dessa forma que a cultura do macho-pegador vai desde a infância sendo construída para assegurar uma identidade masculina masculinizada, viril e conquistadora num sentido militar, inclusive com o consentimento e aprovação das mulheres, diga-se.
No caso do “macho-pegador” Rômulo, some-se ainda uma questão de classe; como um bom filho da gorda classe média local, de fato ele deve acreditar que, em razão de seu status, poder econômico e aparência, é um absurdo ele ser recusado por quem quer que fosse. Como tal, ele merece ser bem-sucedido em tudo que faz. Em qualquer investida, ele só concebe o êxito e o sucesso, o fracasso jamais pode ser uma alternativa. Afinal, ele é um homem de sucesso, bonito e invejado socialmente, portanto, irrecusável para qualquer mulher.
O machismo misturado a essa arrogância de classe tornam muitos homens incapazes de lidar com a recusa, com a autonomia e o direito do outro de não se dobrar perante suas vontades e de ver nas mulheres seres éticos e livres.
Cenas e episódios como os que envolveram Rômulo Lemos e a estudante Rhanna, para além da apuração e dos procedimentos legais, devem nos servir para questionar a consagração dessa cultura do macho-pegador. A ferocidade dessa cultura manifesta-se em relações sociais de gênero assimétricas entre homens e mulheres, estabelecidas segundo padrões violentos de sociabilidade e de identidades de gênero pré-definidas para proporcionar o desempenho de papéis que brinda uns como sujeitos e outr@s como objetos de poder e de assujeitamento. Um dos problemas centrais, nesse caso, reside, portanto, em como nossa sociedade naturaliza uma forma de masculinidade na qual a violência e o direito sobre o outro como objeto de seu desejo e vontade são elementos estruturadores da identidade, autoimagem e performance masculinas.
Por último, caberia perguntar também, até que ponto a violência, a agressividade e misoginia masculinas seriam não apenas produtos de um processo de incorporação dessa cultura do macho-pegador, mas também o resultado da repressão dos elementos mais emocionais, uma ocultação das emoções e dos gestos mais afetuosos cujo desdobramento resulta numa quase impossibilidade dos homens de expressar-se de outro modo. Afinal, sobre eles pesa um verdadeiro medo de apresentar uma masculinidade desmasculinizada, desvirilizada. No fundo, a agressividade e a força, talvez, ocultem mais medo e insegurança do que outra coisa. De todo modo, portanto, não nos faltam questões e, infelizmente, exemplos que provam a urgência de repensarmos a consagração dessa cultura do macho-pegador e dos processos de produção da masculinidade centrados na subordinação do feminino.
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